Faz algum tempo, eu tinha saído com
a minha companheira na época para o aniversário de um familiar dela. Na volta, enquanto
estávamos na ‘Almirante Barroso’ esperando algum ‘Cidade Nova’, eis que vem em
nossa direção uma senhora dizendo que estava perdida e perguntando se sabíamos
onde era a “Rua Santo Antônio”. Nós ficamos meio pasmos e sem saber o que
dizer, mas queríamos ajudar.
Ela foi dando outras informações bem
vagas e sem muito nexo, até que, diante de nossa impossibilidade, acabamos
deduzindo que ela morava perto da feira da 'Mauriti', então dissemos pra ela ir
em frente e dobrar à esquerda. Mas continuamos preocupados e refletindo sobre
qual era a real situação dela, pois não parecia de jeito nenhum ser moradora de
rua. Acabamos chegando à conclusão de que ela poderia ter ‘Mal de Alzheimer’ ou
coisa parecida e devia ter saído de casa sem que a família percebesse.
Nesse ínterim, nós avistamos que ela
não tinha dobrado à esquerda. Ficamos bastante apreensivos e corremos atrás
dela. Neste momento eu tentava pensar numa maneira de ajudá-la, sendo que em
Belém, pelo que sei, não há nenhum tipo de ‘órgão competente’ ao qual
pudéssemos recorrer numa situação como aquela. Analogamente, refleti também
sobre o grande número de pessoas que passam por este tipo de situação e,
simplesmente, não tem onde buscar ajuda. E mesmo as pessoas em volta que
gostariam de ajudar ficam de mãos atadas porque, basicamente, não ‘há o que
fazer’. Isso só faz salientar o quanto a verdadeira solidariedade é castrada
pela lógica individualista do sistema em que vivemos. Não há nenhum senso de
comunidade no ‘planejamento urbano’ das metrópoles.
Mesmo correndo atrás da senhora pra
tentar ajudá-la, eu já estava meio desanimado. Ponderei sobre o provável contexto
social daquela senhora que se mostrava bastante simpática contando sobre suas
idas numa feira e que tinha pegado um ônibus pra ir até lá e acabou parando em
‘São Brás’; ou seja, ela já tinha andado uma distância considerável.
Levando em conta também o fato de a
senhora ser negra, remontei na minha cabeça tantas e tantas senhoras, crianças,
jovens, enfim, pessoas afro-brasileiras que ficam andando ‘perdidas’ pelas ruas
por resultado de nossa herança histórica, política e social. Muita gente
questiona isso, mas é só olhar pra rua e perceber as origens dos que são
sacrificados pela exclusão inerente do capitalismo...
A minha companheira, que é de origem
africana e indígena, estava bem mais encorajada do que eu. Talvez porque ela
não leve imediatamente tão em conta uma conjectura mais ampla como a minha. Ela
é mais impulsiva e estava disposta, como diria Malcolm X, a ajudar a senhora
“por qualquer meio necessário”.
Enfim, decidimos levá-la até a uma
delegacia de polícia, que por ‘sorte’, estava em greve. Se não conseguíssemos
falar com ninguém, pensei até em ‘pedir’(exigir) ajuda numa emissora de TV que
diz ser, com a sua monumental e ‘ilibada’ torre, ‘a voz do povo’.
No caminho tentamos, sem muito
sucesso, conseguir mais informações da família da senhora. Enquanto isso, minha
companheira a fez prometer que nunca mais sairia de casa sozinha. O comentário
mais marcante da senhora durante a conversa foi quando ela disse pra minha
patroa: “Eu me perdi porque saí de casa sozinha, você não se perde porque sai
com o seu marido...”.
Quando chegamos, tinham dois
policiais na delegacia. Tentamos explicar a situação e pedir um encaminhamento.
Como era de se esperar, disseram que não poderiam fazer muita coisa, pois não
era da ‘competência’ deles. Inclusive, um dos policiais ainda esboçou uma
repreensão à nossa atitude dizendo que, apesar de ser de ‘boa fé’, poderia
trazer conseqüências pra gente, pois estávamos tomando ‘responsabilidade’ sobre
a senhora. Ademais, o policial disse já ter tido problema com este tipo de
situação citando um caso envolvendo um famoso ‘delegado herói’. Indaguei,
porém, que não há na cidade onde recorrer numa situação como aquela e disse de
maneira polida “tanto faz” pras ‘conseqüências’. O policial concluiu com “a
culpa é desse governo aí”...
O outro policial, que era negro, acabou
sensibilizando-se com a história e com a visível comoção da minha namorada que
já começava a chorar frente à falta de perspectivas para o problema de uma
pessoa altamente vulnerável. O policial nos levou ao corpo de bombeiros que,
também como era de se esperar, disseram que não era de sua ‘alçada’ atuar em
casos como aquele. Inclusive, sugeriram algo curioso e bastante simbólico:
“talvez seja melhor levá-la na Liberal”; disse rindo o oficial. É a típica
utilização sensacionalista das tragédias sociais pelos meios de comunicação,
que em vez de oferecer uma solução mais fidedigna, acabam apenas se
aproveitando dos dramas das pessoas menos favorecidas.
De súbito, a senhora começou a dizer
que se nós voltássemos à delegacia ela conseguiria acertar o caminho de volta.
Resolvemos tentar e o policial mostrou-se solidário seguindo as orientações da
senhora, até que ela já não conseguia mais lembrar-se do caminho. Foi então que
começamos a perguntar para as pessoas nas casas ao redor se elas conheciam a
“Rua Santo Antônio” ou reconheciam a senhora. Um grupo de pessoas reconheceu-na
dizendo que ela - “ficava andando sempre por ali”- e nos direcionaram ao
provável endereço dela. Ficamos rodando e pedindo informações durante algum
tempo, o clima era meio tenso porque era uma área de periferia onde havia uma
visível animosidade entre os moradores e a polícia. Além disso, enquanto
conversávamos, minha namorada mostrava um visível abatimento e o policial
demonstrou-se comovido repetindo: “Oh meu Deus...”; “Que tristeza...”.
De repente, a senhora reconheceu o
filho dela que andava pela rua. Paramos o carro e o rapaz, visivelmente
assustado, recebeu-a dizendo: “Eu disse que não era pra senhora sair de casa!”;
Enquanto minha namorada exclamava: “Vê se cuida bem da tua mãe, Por Favor!”. Depois
disso, voltamos para o carro e o policial disse ter reconhecido o rapaz acrescentando que era ‘marginal’.
Eu interroguei o policial se ele já tinha visto o jovem antes e ele disse: “Já! É 157!”.
Em seguida, ele atendeu um chamado
de assalto. Enquanto conversava, acabou expressando a lógica elitista racista
impregnada na polícia, mesmo sendo ele um policial negro e que ainda se comovia
perante problemas como aquele que ‘resolvemos’. O mais atentável no seu relato
foi a frieza com a qual disse: “Tu sabes que eu não perco a oportunidade, se
não tivesse testemunha eu atirava mesmo, sem pena!”. Entretanto, logo depois,
demonstrou seu cansaço e desgaste com toda realidade violenta que tem de lidar
todos os dias: “Já tô nisso há 35 anos cara, não agüento mais, tô contando os
dias pra minha aposentadoria”. De modo que ele desabafou isso depois de dizer
que a sua casa tinha sido assaltada.
A polícia, assim como a maioria das
instituições, acaba tento do papel de ‘jogar pra de baixo do tapete’ as mazelas
do sistema em que vivemos. Sendo que, o policial, além de ter de aderir uma
ideologia bastante reacionária e até anti-humana, é também vítima da violência
arraigada na lógica marginalizante do capitalismo. Os policiais acabam sendo os
responsáveis pelo ‘trabalho sujo’ por serem a ‘ponta de lança’ da repressão. Conseqüentemente,
eles também correm riscos constantes perante as inevitáveis ‘desforras’.
Apesar de todo este clima de
hostilidade, violência, individualismo, incapacidade, impotência, tristeza,
etc... Conseguimos um ‘alento’, ‘solucionando’ um problema emergente e com a
ajuda de ‘onde menos se esperava’. Mas será que temos motivo pra ficar felizes?
Quando finalmente pegamos o ‘Cidade
Nova’, minha companheira chorou copiosamente...