domingo, 29 de dezembro de 2013

Um Dia Emblemático...





           Faz algum tempo, eu tinha saído com a minha companheira na época para o aniversário de um familiar dela. Na volta, enquanto estávamos na ‘Almirante Barroso’ esperando algum ‘Cidade Nova’, eis que vem em nossa direção uma senhora dizendo que estava perdida e perguntando se sabíamos onde era a “Rua Santo Antônio”. Nós ficamos meio pasmos e sem saber o que dizer, mas queríamos ajudar.
            Ela foi dando outras informações bem vagas e sem muito nexo, até que, diante de nossa impossibilidade, acabamos deduzindo que ela morava perto da feira da 'Mauriti', então dissemos pra ela ir em frente e dobrar à esquerda. Mas continuamos preocupados e refletindo sobre qual era a real situação dela, pois não parecia de jeito nenhum ser moradora de rua. Acabamos chegando à conclusão de que ela poderia ter ‘Mal de Alzheimer’ ou coisa parecida e devia ter saído de casa sem que a família percebesse.
            Nesse ínterim, nós avistamos que ela não tinha dobrado à esquerda. Ficamos bastante apreensivos e corremos atrás dela. Neste momento eu tentava pensar numa maneira de ajudá-la, sendo que em Belém, pelo que sei, não há nenhum tipo de ‘órgão competente’ ao qual pudéssemos recorrer numa situação como aquela. Analogamente, refleti também sobre o grande número de pessoas que passam por este tipo de situação e, simplesmente, não tem onde buscar ajuda. E mesmo as pessoas em volta que gostariam de ajudar ficam de mãos atadas porque, basicamente, não ‘há o que fazer’. Isso só faz salientar o quanto a verdadeira solidariedade é castrada pela lógica individualista do sistema em que vivemos. Não há nenhum senso de comunidade no ‘planejamento urbano’ das metrópoles.
            Mesmo correndo atrás da senhora pra tentar ajudá-la, eu já estava meio desanimado. Ponderei sobre o provável contexto social daquela senhora que se mostrava bastante simpática contando sobre suas idas numa feira e que tinha pegado um ônibus pra ir até lá e acabou parando em ‘São Brás’; ou seja, ela já tinha andado uma distância considerável.
            Levando em conta também o fato de a senhora ser negra, remontei na minha cabeça tantas e tantas senhoras, crianças, jovens, enfim, pessoas afro-brasileiras que ficam andando ‘perdidas’ pelas ruas por resultado de nossa herança histórica, política e social. Muita gente questiona isso, mas é só olhar pra rua e perceber as origens dos que são sacrificados pela exclusão inerente do capitalismo...
          A minha companheira, que é de origem africana e indígena, estava bem mais encorajada do que eu. Talvez porque ela não leve imediatamente tão em conta uma conjectura mais ampla como a minha. Ela é mais impulsiva e estava disposta, como diria Malcolm X, a ajudar a senhora “por qualquer meio necessário”. 
            Enfim, decidimos levá-la até a uma delegacia de polícia, que por ‘sorte’, estava em greve. Se não conseguíssemos falar com ninguém, pensei até em ‘pedir’(exigir) ajuda numa emissora de TV que diz ser, com a sua monumental e ‘ilibada’ torre, ‘a voz do povo’.
            No caminho tentamos, sem muito sucesso, conseguir mais informações da família da senhora. Enquanto isso, minha companheira a fez prometer que nunca mais sairia de casa sozinha. O comentário mais marcante da senhora durante a conversa foi quando ela disse pra minha patroa: “Eu me perdi porque saí de casa sozinha, você não se perde porque sai com o seu marido...”.
            Quando chegamos, tinham dois policiais na delegacia. Tentamos explicar a situação e pedir um encaminhamento. Como era de se esperar, disseram que não poderiam fazer muita coisa, pois não era da ‘competência’ deles. Inclusive, um dos policiais ainda esboçou uma repreensão à nossa atitude dizendo que, apesar de ser de ‘boa fé’, poderia trazer conseqüências pra gente, pois estávamos tomando ‘responsabilidade’ sobre a senhora. Ademais, o policial disse já ter tido problema com este tipo de situação citando um caso envolvendo um famoso ‘delegado herói’. Indaguei, porém, que não há na cidade onde recorrer numa situação como aquela e disse de maneira polida “tanto faz” pras ‘conseqüências’. O policial concluiu com “a culpa é desse governo aí”...
            O outro policial, que era negro, acabou sensibilizando-se com a história e com a visível comoção da minha namorada que já começava a chorar frente à falta de perspectivas para o problema de uma pessoa altamente vulnerável. O policial nos levou ao corpo de bombeiros que, também como era de se esperar, disseram que não era de sua ‘alçada’ atuar em casos como aquele. Inclusive, sugeriram algo curioso e bastante simbólico: “talvez seja melhor levá-la na Liberal”; disse rindo o oficial. É a típica utilização sensacionalista das tragédias sociais pelos meios de comunicação, que em vez de oferecer uma solução mais fidedigna, acabam apenas se aproveitando dos dramas das pessoas menos favorecidas.
            De súbito, a senhora começou a dizer que se nós voltássemos à delegacia ela conseguiria acertar o caminho de volta. Resolvemos tentar e o policial mostrou-se solidário seguindo as orientações da senhora, até que ela já não conseguia mais lembrar-se do caminho. Foi então que começamos a perguntar para as pessoas nas casas ao redor se elas conheciam a “Rua Santo Antônio” ou reconheciam a senhora. Um grupo de pessoas reconheceu-na dizendo que ela - “ficava andando sempre por ali”- e nos direcionaram ao provável endereço dela. Ficamos rodando e pedindo informações durante algum tempo, o clima era meio tenso porque era uma área de periferia onde havia uma visível animosidade entre os moradores e a polícia. Além disso, enquanto conversávamos, minha namorada mostrava um visível abatimento e o policial demonstrou-se comovido repetindo: “Oh meu Deus...”; “Que tristeza...”.
            De repente, a senhora reconheceu o filho dela que andava pela rua. Paramos o carro e o rapaz, visivelmente assustado, recebeu-a dizendo: “Eu disse que não era pra senhora sair de casa!”; Enquanto minha namorada exclamava: “Vê se cuida bem da tua mãe, Por Favor!”. Depois disso, voltamos para o carro e o policial disse ter reconhecido o rapaz acrescentando que era ‘marginal’. Eu interroguei o policial se ele já tinha visto o jovem antes e ele disse: “Já! É 157!”.
            Em seguida, ele atendeu um chamado de assalto. Enquanto conversava, acabou expressando a lógica elitista racista impregnada na polícia, mesmo sendo ele  um policial negro e que ainda se comovia perante problemas como aquele que ‘resolvemos’. O mais atentável no seu relato foi a frieza com a qual disse: “Tu sabes que eu não perco a oportunidade, se não tivesse testemunha eu atirava mesmo, sem pena!”. Entretanto, logo depois, demonstrou seu cansaço e desgaste com toda realidade violenta que tem de lidar todos os dias: “Já tô nisso há 35 anos cara, não agüento mais, tô contando os dias pra minha aposentadoria”. De modo que ele desabafou isso depois de dizer que a sua casa tinha sido assaltada.
            A polícia, assim como a maioria das instituições, acaba tento do papel de ‘jogar pra de baixo do tapete’ as mazelas do sistema em que vivemos. Sendo que, o policial, além de ter de aderir uma ideologia bastante reacionária e até anti-humana, é também vítima da violência arraigada na lógica marginalizante do capitalismo. Os policiais acabam sendo os responsáveis pelo ‘trabalho sujo’ por serem a ‘ponta de lança’ da repressão. Conseqüentemente, eles também correm riscos constantes perante as inevitáveis ‘desforras’.
            Apesar de todo este clima de hostilidade, violência, individualismo, incapacidade, impotência, tristeza, etc... Conseguimos um ‘alento’, ‘solucionando’ um problema emergente e com a ajuda de ‘onde menos se esperava’. Mas será que temos motivo pra ficar felizes?

            Quando finalmente pegamos o ‘Cidade Nova’, minha companheira chorou copiosamente...